domingo, 24 de junho de 2012

Leila Diniz e a Transformação Social

O texto ocorre pelos 40 anos de Morte de Leila Diniz. É o conteúdo de uma palestra quando da homenagem organizada por sua irmã, Ligia Diniz, na AARJ- Associação de Arte-terapia do Rio de Janeiro. 


 Fazem 40 anos que Leila Diniz nos deixou. Aos 27 anos, faleceu cedo, como convém a todo herói ou heroína. “Nenhum herói morre ao leito, de apendicite”, dizia o mitólogo Junito de Sousa Brandão, aquele que mais entendeu dos mitos e dos deuses. Leila foi nossa deusa da liberdade e dos desafios dos costumes estabelecidos. 


A cultura brasileira aguardava, em peso, de forma inconsciente, o aparecimento libertário de Leila Diniz. No período colonial, durante o impensável período de quatro séculos, a cultura brasileira sofreu o maior trauma de sua história: a escravidão, que até hoje deixa seus traços estereotipados no inconsciente cultural brasileiro, manifestando-se em racismo disfarçado, o que chamei racismo cordial. Bem próximo a nós, nos anos sessenta,um segundo trauma: a ditadura militar, a escravidão de todos, o cala boca do cidadão das ruas. Em período de vinte anos,  menor do que a escravidão, mas igualmente traumático para a nossa cultura, a ditadura militar, a manifestação visível do arquétipo do saturno devorador, constelou o puer libertário do movimento estudantil e também Leila Diniz. Leila se identificava bem com o movimento estudantil com seu viés político e de denúncia da repressão. O movimento de Leila também proclamou em alta a voz a necessidade de liberdade do corpo, da mulher, do desejo... das liberdades mais essenciais. 


 Sua entrevista em uma edição do jornal Pasquim de 1969 tornou-se um ícone revolucionário. Trouxe à luz a proclamação libertária de Leila, sua linguagem espontânea, livre de amarras bem educadas e do bom comportamento das patricinhas recatadas e tradicionais. Sabemos que O Pasquim vendeu nesse seu único número com a entrevista de Leila Diniz mais do que em toda sua história. A entrevista motivou o Decreto do Presidente Médici estabelecendo a censura prévia à imprensa. Na entrevista Leila utiliza um sem número de palavrões, substituídos por asteriscos. O uso de asteriscos foi decisão do Pasquim após a cantora Gal Costa pouco tempo antes ter usado a palavra tesão, o que trouxe inúmeros problemas para o jornal. Ainda na mesma entrevista acontece a famosa frase de Leila: A mulher pode muito bem amar uma pessoa e ir para a cama com outra. Já me aconteceu isso. Que par de frases mais terrível, mais imperdoável! Uma verdadeira ameaça à sociedade brasileira e aos bons costumes. 
O decreto presidencial que se seguiu foi curiosamente chamado de decreto Leila Diniz e assim se tornou conhecido. 
Podemos brincar um pouco com a expressão Decreto Leila Diniz. Porque o decreto do presidente não se chamou Decreto Médici, ou Decreto No ...tal, ou Decreto dos Bons Costumes, ou qualquer outro nome? Nomeando o Decreto pela personalidade que o provocou, se está ao mesmo tempo recordando Leila Diniz, enfatizando a sua importância, tomando-a como a referência que de fato é. É um processo mental descrito por Freud como denegação, na tentativa de se negar algo perigoso para os valores da consciência, afirma-se mais ainda esse conteúdo a ser negado. Podemos dizer: Eu Decreto: Leila Diniz! Leila Diniz veio para ficar, para re-significar a cultura, para transformar! De agora em diante, a presença de Leila em todos está Decretada. O próprio nome da proibição do Mito enfatiza sua presença e sua força atuante na sociedade. 


A cultura brasileira seguia grosso modo a cultura europeia com seu padrão patriarcal de controle. Isso apesar de seus mitos culturais próprios, a carnavalização, a malandragem, a corrupção em larga escala e outros estereótipos sociais próprios das culturas latinas. Entretanto, a mulher comum continuava agrilhoada nas correntes da repressão patriarcal. Todo o movimento cultural que teve início no ocidente nos anos `60 com a descoberta da pílula anticoncepcional, a tecnologia dos alimentos, anunciava a liberdade da mulher como figura decorativa da casa, cuidadora específica dos alimentos e dos filhos. Os jovens saíam às ruas de Paris em 1968 com diversas reivindicações, as mulheres também atuavam nessa época para revolucionar a sociedade na qual ocupavam papel secundário. Mas a mulher brasileira permanecia como que inconsciente dessas possibilidades novas que se agitavam no inconsciente cultural e procuravam expressão. Todo valor no inconsciente necessidade encontrar um veículo de expressão para a consciência coletiva, um veículo que transmita o novo valor para a cultura. Leila Diniz foi a escolhida para ser o Mito símbolo libertário, a expressão dos novos valores da mulher. 


 Leila foi como um cometa fulgurante em noite escura, durante sua rápida passagem entre nós. Tornou-se um Mito, no sentido mais essencial do Mito, o Mito como verdade. O Mito tem uma polissemia de significados que escapa à razão imediata. O Mito Leila transforma a cultura com novas mensagens, novos comportamentos, que a princípio, escandalizam, depois são admirados, imitados, acolhidos, tomados como modelo de comportamento. Como disse Rita Lee muito acertadamente. : toda mulher tem seu lado Leila Diniz... 


Como se dá esse processo de uma pessoa como Leila encarnar valores coletivos, tornando-se um Mito cultural de referência? Como dizíamos antes, os valores libertários que Leila encarnou já aguardavam no inconsciente cultural brasileiro um portador que os revelasse. Essa revelação não poderia ser feita simplesmente pela afirmação teórica do novo papel da mulher como uma tese de Doutorado, ou uma produção teórica de antropologia social. Esses valores teriam que ser antes de tudo, encarnados, vividos em três dimensões, trazidos à vida de forma transparente e convicta. Leila Diniz foi a personificação perfeita desses valores. Além do mais, como atriz de sucesso em diversos filmes e novelas de televisão tinha grande visibilidade. Em toda sua vida foi a afirmação direta, plena, totalmente verdadeira dos valores da liberdade de escolha, do amor acima das convenções e do direito pleno às livres escolhas e ao desejo. Quais seriam basicamente os valores do Mito Leila para a nova mulher brasileira? Uma nova política do corpo, um ganho de liberdade sobre o próprio prazer sexual da mulher. Como dizia Leila Diniz: transo de manhã, à tarde e à noite. Ou ainda: Minha saúde mental é perfeita. Não evito o amor nunca. 
Embora fosse a porta-voz da liberdade sexual, Leila deixava bem claro que: 
Não sou contra o casamento, Mas muito mais do que representar ou escrever, ele exige dom. 
 Essa fala de Leila mostra sua inteligência e maturidade excepcionais para sua idade. Revela, além disso, suas opiniões independentes, e sua rebelião contra o casamento vivido apenas como fachada, uma forma de acomodação do desejo em prol do conforto material. Casamento é coisa muito séria e exige um dom especial. 
 As famosas fotos que tirou em estado de avançada gravidez na praia de Ipanema são também libertárias em relação ao corpo. O sol e a praia seriam bons para sua filha, ela pode usufruir desse prazer da maternidade sem o recato tradicional, tímido, quase envergonhado das grávidas até então. A gravidez de Leila é uma gravidez alegre, orgulhosa, desafiadora até. Uma manifestação de sua forte personalidade. A mulher nos novos tempos não está mais impedida do acesso ao prazer sexual e o homem não deve agora se preocupar não somente em ter prazer mas também em dar prazer... Sua companheira também participa do jogo do prazer como uma parceira de trabalho e gozo. Era necessário alguém dizer essas verdades claramente, viver essa denúncia, personificar a mudança. Por isso Leila transcendeu os limites da personalidade individual e tornou-se um Mito da cultura brasileira. 


Leila não se deteve apenas nas questões da sexualidade. Suas declarações e frases famosas passam a imagem de alguém além de seu tempo, uma característica daqueles que encarnam um Mito. Por vezes Leila foi muito psicológica falando da sombra e da persona: 
Todos os cafajestes que conheci na minha vida eram uns anjos de pessoas
Era também uma crítica feroz aos modismos e atitudes superficiais sem consistência: 
A mulher brasileira deveria ir menos ao psicanalista e mais ao ginecologista
Falava também da solidão necessária para aquele que busca uma existência de real significado. A heroína que traz transformação caminha só, pois sua percepção das coisas é pessoal e única:
 Sei que me arrisco à solidão, se é isso que me perguntam. Mas eu sei viver assim! 
Sempre andei sozinha. Me dou bem comigo mesma
Em todos os valores, o maior de todos, aquele que centralizava todas as suas referências: a liberdade. 
Sobre minha vida, sobre meu modo de viver, não faço o menor segredo: sou uma moça livre. 
 No final de sua vida plena, a maternidade de sua filha Janaína, fruto de seu casamento com cineasta Rui Guerra, ocupa papel bastante importante e responsável. Leila Diniz veio a falecer aos 27 anos em acidente avião da Japan Airlines próximo a Nova Delhi, em 1972. Em seu diário pessoal achado no local do acidente foram encontradas suas últimas reflexões. Leila estava preocupada com Janaína, que devido a suas inúmeras viagens ficava tempo longo demais com a babá: Breve a babá se tornará mãe e a mãe se tornará babá, refletiu Leila antes de morrer. Uma preocupação humana, típica da mulher atual em seu novo papel de mãe e profissional procurando a integração criativa dos dois papéis. Aqui aparece a mulher plena da contemporaneidade, exemplo de Leila Diniz, mulher plenamente realizada e íntegra aos 27 anos, belíssimo exemplo de processo de individuação dentro da acepção de Jung, heroína desbravadora de novos caminhos para a mulher e também para o homem brasileiro.


Walter Boechat
Analista Junguiano
Escritor.

Um comentário:

  1. Leila destruiu a vida dela,depois da entrevista do Paquim,ficou sem emprego,depois da filha tinha k trabalhar e foi obrigada a viajar e deixar ainda tao novinha,o medo de morrer e deixar sua filha,tudo que sai da boca tem consequencias,boas ou mas,pena!!!

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