sexta-feira, 6 de julho de 2012

Dramaturgia e Insconsciente: Uma perspectiva Junguiana do Teatro




O teatro como arte tem suas origens na Grécia, manifestando-se nos gênios de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Anteriormente à Grécia naturalmente havia o teatro, mas um teatro apenas litúrgico, como no Egito e China, quando o drama encenado tinha finalidade ritualística e religiosa, na qual as ações representariam manifestações do sagrado ocorridas in illo tempore.
A tragédia grega, como é sabido, foi definida por Aristóteles, que a diferenciou da epopéia tradicional, em sua Poética. Aristóteles elaborou dois conceitos fundamentais para a compreensão do que seja teatro, a qüestão da Kátharsis e da Mýmesis.
Mýmesis, imitação, foi conceito trabalhado por Platão, mas dentro de seu referencial da dialética entre aparência e essência. Assim, o artista não criaria, mas recriaria a partir das matrizes perfeitas do mundo das idéias. O teatro, vivendo nos domínios da imitação, afasta o espírito da verdade, sendo, portanto, essencialmente imoral.
Para Aristóteles a mimética da arte trágica é forma adequada de elaborar a tragicidade do mito, trazendo-a,  pela imitação, para mais próximo da realidade humana. A tragédia, embora plasmada nos mitos eternos, possibilita a identificação do espectador com o personagem,  pelo fenômeno da kátharsis.
O que é a kátharsis ou catarse? Termo originário da medicina antiga, significa purificação. O teatro através dos fenômenos da catarse e da mímesis,  desperta emoções primitivas do inconsciente coletivo de forma mais ou menos consciente, operando uma transformação da consciência, levando à reflexão.
O ator da tragédia, personagem do drama arquetípico encenado, tem analogia com a figura do herói. Isto porque o homem, enquanto ánthropos, está sujeito à lei apolínea do métron, a medida de cada um, que nunca pode ser ultrapassada.
O homem, enquanto simples mortal, não pode ultrapassar sua própria medida, e quando o faz, sob a égide de Dioniso, deus do teatro, do êxtase e do entusiasmo, torna-se um Anér, um herói trágico, pois segundo a tradição, é o destino do herói o excesso, o pecado do orgulho, hýbris, provocando o castigo divino, némesis, que leva à Áte, cegueira da razão, e à punição final pela Moira, destino. Este é o roteiro arquetípico do Anér que ultrapassa sempre sua medida e à ela é reconduzido pela Moira.
O herói trágico expressa a maneira de proceder do ator, pois este deverá agir e responder "em êxtase e entusiasmo", sob a influência dionisíaca, pois ele, como ator, não é ele próprio, mas outro; daí a palavra grega para ator ser hipokrités, "aquele que age, atua e responde em êxtase e entusiasmo". O fundamento arquetípico da tragédia é a recondução do Ator, o hipokrités,  "aquele que age em êxtase e entusiasmo", portanto sob a influência de Dioniso, à sua própria medida humana enquanto ánthropos.   

A catarse, identificação emocional entre assistente e personagem, com grande liberação de emoção tem origem na medicina, como já mencionado. Ela reaparece nas modernas formulações da psicanálise.
Freud e Breuer denominaram o método que acabavam de inaugurar em fins do século passado de "método catártico", pois o paciente falando ao médico de vivências desagradáveis e reprimidas, vivenciaria uma catarse purificatória, pela abreação; isto é, a expressão e conscientização de conteúdos fortemente carregados de afeto. A catarse seria uma forma de integração destes conteúdos reprimidos.

Também no teatro trágico, expressão mimética de conteúdos mitológicos arquetípicos, a catarse favorece a abreação e tem portanto aspectos terapêuticos. Não é por acaso que as modernas técnicas de tratamento com psicóticos inclui o teatro terapêutico, vivenciado em comunidade hospitalar, e em psicoterapia o psicodrama tem  um espaço significativo.
O aspecto terapêutico do teatro é, naturalmente, apenas pequena parcela do significado social e cultural, como agente transformador de indivíduos e da cultura. Porta-voz de símbolos culturais fundamentais, o teatro é agente essencial na conscientização dos indivíduos e no questionamento social. Isto devido ao processo mimético pelo qual o drama arquetípico e ritualizado ao nível das realidades essenciais do ser humano.

O ator vivencia no teatro diversos personagens que falam através de sua persona teatral. A dissociabilidade da psique é expressa em grau máximo. Também o sonho é expressão da dissociabilidade da psique, no qual os vários complexos autônomos aparecem como personagens do drama interno, de nosso teatro interior, na verdade, o sonho é um verdadeiro Théatron, em sentido grego, “lugar onde se vê”. Os conteúdos autônomos aparecem como personagens, verdadeiros símbolos, ocultos por suas máscaras, ou Gr. Prósopon, (“aquilo que vem antes”) lat. Persona (personare, soar através de).

A oposição de Platão ao teatro é curiosa, pois sua forma de escrever é o diálogo, é a de múltiplas personagens, uma reflexão filosófica dentro de uma polifonia de personagens históricos ou imaginários que contituem seu teatro interior. Lembramos nesse contexto seu mais famoso diálogo,  O Banquete, um verdadeiro circumambulatio  (andar em torno) do símbolo amor, uma peça teatral no qual diversos personagens expressam diferentes perspectivas sobre o místério de Eros.

Walter Boechat
Analista Junguiano, Escritor.
Autor de Mitopoese da Psique, Ed. Vozes, 2a ed.

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