domingo, 6 de janeiro de 2013

A Igreja do Diabo e o Problema do Mal

Continuando algumas reflexões sobre a natureza do Mal no mundo feitas nesse Blog, venho comentar o delicioso conto de Machado de Assis, "A Igreja do Diabo". O conto mostra nosso maior escritor em grande  forma, demonstrando mais uma vez, que sem a literatura a psicanálise não teria existido... (Sem Shakespeare e Machado, Freud e Jung não poderiam existir...)



A Igreja do Diabo
Reflexões sobre um conto de Machado de Assis
Walter Boechat


A questão da personificação do Mal é tema que ocupa o imaginário de todas as culturas e em todos os tempos. Embora a doutrina agostiniana do summum bonum exclua o mal como tendo uma existência real, persistiram em todas as épocas maneiras de personificar o mal ou o Diabo atestando a todo momento sua existência e atuação. Mesmo porque, se a doutrina do Privatio Boni (i.e, o Mal nada mais sendo do que uma mera privação do Bem) tivesse alguma validade, poderíamos, ao revés, considerar que o Bem não teria existência real, sendo apenas um estado de privação do Mal, este sim, tendo existência real, o Summum Malum...
A personificação do Mal mais conhecida na história das religiões, de forma sistematizada é na religião Persa, onde o princípio divino Ahura Mazda se manifesta como os princípios opostos Ormudz (o Bem) e Arimã (o Mal). A partir da ambivalência maniqueísta a tradição judaico-cristã se estabelece. No antigo testamento, o ambivalente Javé parece por vezes incluir os opostos de Bem e Mal (em seus violentos castigos e punições) e a figura do Diabo não tem ainda a presença tão destacada como no Cristianismo. Mas Satã, quando aparece, o faz sempre como uma figura fora do domínio do divino, o anjo caído, não redimido.
Se do Pater (Deus Pai) emerge o Filius, também dele nasce o Diabolus. Em algumas tradições, como no gnosticismo, o princípio do Mal, Satanael, (Satana-el, Satan de Deus)  é mesmo o  o irmão mais velho do Cristo. Como lembra Jung em seu livro sobre o Dogma da Trindade cristã, o arquétipo dos irmãos já se configura na organização desse par, que mais tarde irá aparecer como Caim e Abel. Trata-se de uma dinâmica ou de uma cena arquetípica.
Em vários domínios do imaginário há como se fosse uma necessidade arquetípica de personificação do Mal. Lembramos com Jung que a personificação é a forma de melhor lidarmos com as emoções. Enquanto a emoção fica não personificada, ela ganha autonomia, desconhecida ela é muito mais ameaçadora. Desde o Liber Novus a questão da personificação é valorizada como fundamental por Jung na abordagem dos conteúdos do inconsciente coletivo. Talvez essa necessidade apotropaica de personificação do Mal esteja por detrás das inumeráveis representações do princípio maligno nos mais variados domínios, não só nas religiões, mas nas artes e na cultura popular. É como se a sombra em suas várias esferas de atuação, a sombra individual, grupal, coletiva e arquetípica se tornasse mais familiar, próxima, e menos desconhecida. Portanto menos ameaçadora.
As inúmeras personificações do Diabo aparecem no Brasil desde o descobrimento, segundo do folclorista Câmara Cascudo. Feiticeiras já o teriam em casa, criando-os como pequeninos homenzinhos em vidros e prontos a servi-las. O Diabo apresentava desde o início metamorfoses animais, bode, porco, morcego ou de acordo com a tradição antiga como mosca, como aquelas que pousavam nos restos animais de sacrifícios antigos aos deuses. Nosso maior folclorista cita uma quantidade enorme de sinonímias depreciativas para o demo, um forma de reduzir-lhe o poder,uma capitis diminutio:
Esmulambado, molambudo, cambito, cão, dedo, figura, bode, capa verde, gato preto, rapaz, tinhoso, capeta, coisa, sujo, maioral, ele, maldito, etc, etc, etc... e anda: encapetado, demo, tição, Dianho. (corruptela de DianusJanus (o deus de dupla face)  e Diana)- (C. Cascudo).
A personificação do Diabo como homem de cor negra, magro, com chifres e rabo ainda é a forma mais usual de aparição. Normalmente não toma a forma de animais associados ao mito Cristão, considerados sagrados, o boi, jumento, ovelha, pomba, galo. Foge das procissões, cruzeiros, benzeções, água benta; pode ser vencido por uma série de ritos propiciatórios.
Ocorrem ainda na tradição oral as famosas estórias do Diabo, vindas em sua maioria da península ibérica. Nessas estórias o Diabo é sempre logrado, vencido. Segundo Câmara Cascudo, na classificação brasileira do conto popular há o ciclo do demônio logrado, o que demonstra a necessidade de diminuição do poder do Mal, como que reassegurando à consciência o poder das forças do Bem sobre o mal.
Portanto, toda essa riqueza de nomes, atribuições, representações estórias e rituais propiciatórios podem ser consideradas a manifestação evidente da existência psicológica do Mal, como quer Jung, o Mal como realidade em si. As representações no folclore, religião e artes são maneiras diversas da cultura lidar com a presença desse importante fator psicológico.
Também na literatura a presença do diabo é constante. A Igreja do Diabo de Machado de Assis é apenas um entre diversas manifestações literárias que elaboram a questão do Mal. O problema do Demônio vai estar presente desde os contos de fada, como no conto coletado pelos irmãos Grimm, Os três cabelos de ouro do diabo, entre diversos outros. Na literatura, além da figura  clássica de Mefistófeles em Goethe, temos o conto O Diabo de Tolstói e o conto de Machado de Assis já citado.
No conto A Igreja do Diabo a maestria de nosso maior escritor fica evidente. Compreendemos porque o escritor Anglo-Indiano Salman Rushdie considerou Machado de Assis um dos maiores autores da literatura mundial e o percussor de Jorge Luis Borges e Gabriel Garcia Marques na literatura da América Latina. Machado relata com sua peculiar elegância que “embora os seus ganhos fossem contínuos e grandes, o Diabo se cansara do papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem cânones, sem ritual, sem nada”. E decidiu então a fundar sua própria igreja, assim como Deus tinha a sua.
“Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra escritura, breviário contra breviário. Terei minha missa,....as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico.”
O Diabo compara as virtudes humanas a mantos de veludo que terminam em franjas de algodão. Propõe-se a puxar essas franjas de algodão de modo a ter o manto de veludo inteiro em sua igreja.
O diabo foi ter com Deus e comunicou-lhe a criação de sua igreja. O conto de Machado desenrola-se então quase como um mosaico antitético das virtudes e vícios humanos. Após anunciar com pompa para a humanidade a criação de sua nova igreja o Diabo com linguagem dúbia e surpreendente jogo de palavras, transforma os tradicionais vícios e os pecados capitais nas mais generosas virtudes.
Assim, “A soberba, a luxúria e a preguiça foram reabilitadas...” a avareza, (o diabo) declarou não ser mais que a mãe da economia...”  “A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles não haveria a Ilíada: ‘Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu...” A gula produziu as melhores páginas de Rabellais, virtude tão superior que ninguém se lembra das batalhas do genral romano Lucullo, mas de suas ceias... Foi a gula que o fez imortal...”
“Prometia ainda substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com os frutos das melhores cepas do mundo...Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas...”
O Diabo chamava o fraude de braço esquerdo do homem, o braço direito era a força, mas não se podia impedir que algumas pessoas fossem canhotas. “Ela não exigia que todos fossem canhotos, não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros, aceitava a todos, só não aceitava que não fossem nada.”
“A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda foi a da venalidade... A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito  superior a todos os direitos. Se tu podes vender tua casa, teu chapéu,.... porque não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé?...”
Demonstrou ainda que o amor ao próximo, como obstáculo grave à nova Instituição, não passava de uma invenção de parasitas e negociantes fracassados.
Passados os anos, o Diabo notou que sua religião alcançara reconhecimento universal em todos os povos. Lançou brados de triunfo, julgando-se vitorioso. Um dia, muitos ano depois, percebeu que muitos de seus fiéis voltavam a praticar as antigas virtudes. Elas eram praticadas às escondidas, pouco a pouco, por partes.
Alguns glutões passaram a comer frugalmente em certos dias, justamente em dias de preceito católico, avaros davam esmolas à noite, em ruas mal iluminadas, os dilapidadores do erário restituíam pequenas quantias, os fraudulentos tornavam-se sinceros e verdadeiros, embora de forma dissimulada.
O Diabo ficou espantadíssimo com a descoberta. Voou ao céu, trêmulo de raiva e pediu uma explicação a Deus, que retrucou: “que queres tu, Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. É a eterna contradição humana”. O conto termina com Deus retomando a metáfora do Diabo para as virtudes como mantos.
A exposição de Machado de Assis sobre a contraposição do Bem e do Mal na natureza humana, como elementos indispensáveis da psique, lembra a noção de opostos complementares que também utiliza no Conto O Alienista: um médico do interior fluminense  coloca no hospício toda uma cidade e ao final, chegando a conclusão que todos são normais, interna-se a si próprio. Patologia e a chamada normalidade como opostos necessários e sempre atuantes. Aqui Bem e Mal como duas faces fundamentais da natureza humana, sempre presentes. Na igreja do Diabo as virtudes aparecem como verdadeiros instintos, pulsões essenciais da natureza humana, necessidades vitais (ou arquetípicas). No domínio do Summum Malum, o Bem aparece como elemento fundamental.
A prática do Bem aparece como verdadeira compulsão, praticada às escondidas no domínio do Summum Malum, na esfera da Igreja do Diabo. Nada mais coerente com a noção junguiana de totalidade e da percepção da imago Dei como um Complexio oppositorum na alma do homem. 
O conto A Igreja do Diabo exprime de forma poética o que Jung elaborou teoricamente nos livros Resposta a Jó e Interpretação do Dogma da Trindade: o Mal como existência essencial ao ser humano, como componente fundamental no destino. Não reconhecê-lo e não dar espaço psicológico a ele é dar a ele poder sobre nossas vidas.

Referências
CAMARA CASCUDO, Luis da. (s/d) Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro.
JUNG, C. G. (1952/2011) Resposta a Jó. OC vol. 11- Petrópolis: Vozes.
_________   (1949/2011) Interpretação psicológica do dogma da trindade. OC vol. 11. Petrópolis: Vozes.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. (s/d) A igreja do diabo. In: Histórias sem data. Edição eletrônica Kindle.

 Rio de Janeiro, janeiro de 2013
Walter Boechat.




Um comentário:

  1. Nosso mestre Boechat apresenta, com toda sua grande erudição, uma interpretação do conto machadiano, apontando como o escritor abordou, com sua história, idéias jungianas que ele não podia conhecer, já que viveu antes de Jung.
    O artista cria com base em inspiração que recebe do inconsciente, e que ele apenas (apenas???) organiza usando sua função racional. Como consequência, ele pode não estar consciente de muitas das ideias transmitidas em sua obra. Isso acontece com escritores, mas também com pintores, escultores e outros artistas.
    No meu livro - O Pequeno Príncipe para gente Grande - desvendo alguns ensinamentos escondidos no texto. Duvido que Exupery tivesse conhecimento deles, apesar de haver escrito o livro.
    Machado de Assis provavelmente não conhecia Jung, mas apresentou nas entrelinhas de seu conto ideias junguianas que Boechat magistralmente desencavou.

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