sábado, 31 de agosto de 2013

Leonardo Boff e a Morte do Herói



Escrevo logo após participar do XIX Congresso da Associação Internacional de Psicologia Junguiana em Copenhague, Dinamarca, em agosto de 2013. O Congresso contou com a presença de Leonardo Boff, participação muito aplaudida pelos mais de setecentos participantes de todo o mundo. A sua presença no Congresso foi devido à proposta, por sugestão do analista italiano Luigi Zoja e minha, de Leonardo Boff como membro honorário da Associação Internacional de Psicologia Analítica (IAAP). Sua candidatura foi aceita com entusiasmo e sua presença no Congresso em Copenhague foi das mais importantes. O presidente da IAAP (Associação Junguiana Internacional) o americano Joseph Cambray falou da honra que era para a instituição ter Leonardo Boff entre seus quadros como membro honorário. Leonardo Boff discursou lembrando suas relações com a família de C. G. Jung e de sua participação na tradução da obra completa de Jung para o português pela Editora Vozes.

Em diversas ocasiões durante o Congresso pude conversar com Leonardo Boff sobre algumas questões atuais da política internacional, entre elas o tema da arrogância, isto é, a questão da suprema arrogância da espionagem universal a qual estamos submetidos. O tema da arrogância já havia sido abordado por Luigi Zoja em seu livro A história da arrogância, pela editora Axis Mundi, S. Paulo.
Ao tema da arrogância está atrelado outro tema, o problema da morte do herói. O herói vem sempre acompanhado de associações extremamente positivas, um paradigma da virtude e da ação humana exemplar. Isso desde os tempos mais remotos, quando por exemplo o herói sumeriano Gilgamesh acompanhado de seu amigo Enkidu destruiu Humbaba, o monstro guardião das florestas de cedro. Gilgamesh teve seu épico gravado em tabletes cuneiformes, o primeiro registro escrito realizado pela cultura humana. Isso lá se vão quase cinco mil anos. Gilgamesh era chamado o construtor de muralhas. Essas muralhas da cidade fortificada de Uruk  (que  originou o nome de Iraque) podem ser compreendidas em diversos níveis. Naqueles tempos remotos   a construção de uma cidade era algo fundamental, um marco no desenvolvimento da consciência e da cultura. Mas para esse desenvolvimento da consciência pelos atos heróicos a natureza deve ser vencida,   o monstro Humbaba, guardião das florestas de cedro, deve ser morto. A grande Mãe Ishtar lança contra Gilgamesh seu touro e ele também foi aniquilado.
Construção de grandes cidades, destruição da natureza e de florestas, todas essas imagens nos fazem vir a mente os excessos de heroísmo do homem contemporâneo, com suas megalópoles, sua ganância energética e egoísmo. Portanto o modelo heróico tão importante na construção da consciência e da cultura nao tem mais a validade que teve. Na verdade, os próprios gregos antigos perceberam a tendência do herói em cair em onipotencia e a chamaram de hybris, o pecado de um orgulho a ser punido pelos deuses.
Mas o homem moderno está possuído de uma hybris muito especial, fruto da era tecnológica e de suas armadilhas. O que estou chamando de "a morte do herói" na cultura contemporânea deriva disso: da impossibilidade do mito do herói como nos chegou do mundo antigo servir ainda de modelo para o indivíduo ou para a cultura. Para o indivíduo, alguns autores (O junguiano James Hillman, por exemplo) defenderam já a idéia de que há outros modelos que não o mito do herói clássico para orientar o desenvolvimento da consciência. Por exemplo, o brincar e o jogo são formas lúdicas de desenvolvimento da consciência  não necessariamente heróicas. Em antropologia a figura do herói conquistador fica relativizado quando descobrimos que o colonizado é em muitos aspectos superior ao colonizador e tem muito a ensinar a ele.
O homem contemporâneo é chamado para a difícil da tarefa não de vencer os montros da grande deusa, mas conviver com Gaia e seus filhos. Destruir Gaia agora é suicídio para o herói. Perguntado em entrevista qual o mito mais importante para o homem contemporâneo, Joseph Campbell respondeu ser o mito de Gaia. Isso porque toda a cultura humana é uma só, a aldeia global, e somos todos dependentes de Gaia para nossa sobrevivência.
Todas essas ideias sobre a questão fundamental da ecologia estão em sintonia com a cruzada de Leonardo Boff em prol da defesa de Gaia como um fundamento para a sobrevivência da humanidade. No Congresso Junguiano de Copenhague Leonardo Boff projetou um video de grande importância de título: Crise: oportunidade de crescimento. Boff abordou de forma extremamente criativa os perigos do modelo econômico egoísta do homem contemporâneo mostrando com dados estatísticos o esgotamento da mãe-natureza. Partindo dos múltplos significados da palavra crise "risco ou oportunidade" (ideogramas chineses), Kri,"limpeza"(sanscrito) de onde deriva a palavra "crisol", local de purificação das matérias impuras, Boff propõe diversas saídas criativas para o dilema do homem atual. Se a humanidade está mergulhada em grave crise, a oportunidade de transformação e purificação estão também presentes.



Walter Boechat
Copenhague,  agosto de 2013