Continuando algumas reflexões sobre a natureza do Mal no mundo feitas nesse Blog, venho comentar o delicioso conto de Machado de Assis, "A Igreja do Diabo". O conto mostra nosso maior escritor em grande forma, demonstrando mais uma vez, que sem a literatura a psicanálise não teria existido... (Sem Shakespeare e Machado, Freud e Jung não poderiam existir...)
A Igreja do Diabo
Reflexões sobre um conto de Machado de Assis
Walter Boechat
A
questão da personificação do Mal é tema que ocupa o imaginário de todas as
culturas e em todos os tempos. Embora a doutrina agostiniana do summum bonum exclua o mal como tendo uma
existência real, persistiram em todas as épocas maneiras de personificar o mal
ou o Diabo atestando a todo momento sua existência e atuação. Mesmo porque, se
a doutrina do Privatio Boni (i.e, o
Mal nada mais sendo do que uma mera privação do Bem) tivesse alguma validade,
poderíamos, ao revés, considerar que o Bem não teria existência real, sendo
apenas um estado de privação do Mal, este sim, tendo existência real, o Summum Malum...
A
personificação do Mal mais conhecida na história das religiões, de forma
sistematizada é na religião Persa, onde o princípio divino Ahura Mazda se
manifesta como os princípios opostos Ormudz (o Bem) e Arimã (o Mal). A partir
da ambivalência maniqueísta a tradição judaico-cristã se estabelece. No antigo
testamento, o ambivalente Javé parece por vezes incluir os opostos de Bem e Mal
(em seus violentos castigos e punições) e a figura do Diabo não tem ainda a
presença tão destacada como no Cristianismo. Mas Satã, quando aparece, o faz
sempre como uma figura fora do domínio do divino, o anjo caído, não redimido.
Se
do Pater (Deus Pai) emerge o Filius, também dele nasce o Diabolus. Em algumas tradições, como no
gnosticismo, o princípio do Mal, Satanael,
(Satana-el, Satan de Deus) é mesmo o o irmão mais velho do Cristo. Como lembra Jung
em seu livro sobre o Dogma da Trindade cristã, o arquétipo dos irmãos já se
configura na organização desse par, que mais tarde irá aparecer como Caim e
Abel. Trata-se de uma dinâmica ou de uma cena arquetípica.
Em
vários domínios do imaginário há como se fosse uma necessidade arquetípica de
personificação do Mal. Lembramos com Jung que a personificação é a forma de melhor lidarmos com as emoções.
Enquanto a emoção fica não personificada, ela ganha autonomia, desconhecida ela
é muito mais ameaçadora. Desde o Liber
Novus a questão da personificação é valorizada como fundamental por Jung na
abordagem dos conteúdos do inconsciente coletivo. Talvez essa necessidade
apotropaica de personificação do Mal esteja por detrás das inumeráveis
representações do princípio maligno nos mais variados domínios, não só nas
religiões, mas nas artes e na cultura popular. É como se a sombra em suas
várias esferas de atuação, a sombra individual, grupal, coletiva e arquetípica
se tornasse mais familiar, próxima, e menos desconhecida. Portanto menos
ameaçadora.
As
inúmeras personificações do Diabo aparecem no Brasil desde o descobrimento,
segundo do folclorista Câmara Cascudo. Feiticeiras já o teriam em casa,
criando-os como pequeninos homenzinhos em vidros e prontos a servi-las. O Diabo
apresentava desde o início metamorfoses animais, bode, porco, morcego ou de
acordo com a tradição antiga como mosca, como aquelas que pousavam nos restos
animais de sacrifícios antigos aos deuses. Nosso maior folclorista cita uma
quantidade enorme de sinonímias depreciativas para o demo, um forma de
reduzir-lhe o poder,uma capitis diminutio:
Esmulambado,
molambudo, cambito, cão, dedo, figura, bode, capa verde, gato preto, rapaz,
tinhoso, capeta, coisa, sujo, maioral, ele, maldito, etc, etc, etc... e anda:
encapetado, demo, tição, Dianho.
(corruptela de Dianus – Janus (o deus de dupla face) e Diana)- (C. Cascudo).
A
personificação do Diabo como homem de cor negra, magro, com chifres e rabo
ainda é a forma mais usual de aparição. Normalmente não toma a forma de animais
associados ao mito Cristão, considerados sagrados, o boi, jumento, ovelha,
pomba, galo. Foge das procissões, cruzeiros, benzeções, água benta; pode ser
vencido por uma série de ritos propiciatórios.
Ocorrem
ainda na tradição oral as famosas estórias do Diabo, vindas em sua maioria da
península ibérica. Nessas estórias o Diabo é sempre logrado, vencido. Segundo
Câmara Cascudo, na classificação brasileira do conto popular há o ciclo do demônio logrado, o que
demonstra a necessidade de diminuição do poder do Mal, como que reassegurando à
consciência o poder das forças do Bem sobre o mal.
Portanto,
toda essa riqueza de nomes, atribuições, representações estórias e rituais
propiciatórios podem ser consideradas a manifestação evidente da existência
psicológica do Mal, como quer Jung, o Mal como realidade em si. As
representações no folclore, religião e artes são maneiras diversas da cultura
lidar com a presença desse importante fator psicológico.
Também
na literatura a presença do diabo é constante. A Igreja do Diabo de Machado de Assis é apenas um entre diversas
manifestações literárias que elaboram a questão do Mal. O problema do Demônio
vai estar presente desde os contos de fada, como no conto coletado pelos irmãos
Grimm, Os três cabelos de ouro do diabo,
entre diversos outros. Na literatura, além da figura clássica de Mefistófeles em Goethe, temos o
conto O Diabo de Tolstói e o conto de
Machado de Assis já citado.
No
conto A Igreja do Diabo a maestria de
nosso maior escritor fica evidente. Compreendemos porque o escritor
Anglo-Indiano Salman Rushdie considerou Machado de Assis um dos maiores autores
da literatura mundial e o percussor de Jorge Luis Borges e Gabriel Garcia
Marques na literatura da América Latina. Machado relata com sua peculiar
elegância que “embora os seus ganhos fossem contínuos e grandes, o Diabo se
cansara do papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem
cânones, sem ritual, sem nada”. E decidiu então a fundar sua própria igreja,
assim como Deus tinha a sua.
“Vá,
pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra escritura, breviário contra
breviário. Terei minha missa,....as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o
demais aparelho eclesiástico.”
O
Diabo compara as virtudes humanas a mantos de veludo que terminam em franjas de
algodão. Propõe-se a puxar essas franjas de algodão de modo a ter o manto de
veludo inteiro em sua igreja.
O
diabo foi ter com Deus e comunicou-lhe a criação de sua igreja. O conto de Machado
desenrola-se então quase como um mosaico antitético das virtudes e vícios
humanos. Após anunciar com pompa para a humanidade a criação de sua nova igreja
o Diabo com linguagem dúbia e surpreendente jogo de palavras, transforma os
tradicionais vícios e os pecados capitais nas mais generosas virtudes.
Assim,
“A soberba, a luxúria e a preguiça foram reabilitadas...” a avareza, (o diabo)
declarou não ser mais que a mãe da economia...”
“A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles
não haveria a Ilíada: ‘Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu...” A
gula produziu as melhores páginas de Rabellais, virtude tão superior que ninguém
se lembra das batalhas do genral romano Lucullo, mas de suas ceias... Foi a
gula que o fez imortal...”
“Prometia
ainda substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo,
locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com os frutos das
melhores cepas do mundo...Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude
principal, origem de prosperidades infinitas...”
O
Diabo chamava o fraude de braço esquerdo do homem, o braço direito era a força,
mas não se podia impedir que algumas pessoas fossem canhotas. “Ela não exigia
que todos fossem canhotos, não era exclusivista. Que uns fossem canhotos,
outros destros, aceitava a todos, só não aceitava que não fossem nada.”
“A
demonstração, porém, mais rigorosa e profunda foi a da venalidade... A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um
direito superior a todos os direitos. Se
tu podes vender tua casa, teu chapéu,.... porque não podes vender a tua
opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé?...”
Demonstrou
ainda que o amor ao próximo, como obstáculo grave à nova Instituição, não
passava de uma invenção de parasitas e negociantes fracassados.
Passados
os anos, o Diabo notou que sua religião alcançara reconhecimento universal em
todos os povos. Lançou brados de triunfo, julgando-se vitorioso. Um dia, muitos
ano depois, percebeu que muitos de seus fiéis voltavam a praticar as antigas
virtudes. Elas eram praticadas às escondidas, pouco a pouco, por partes.
Alguns
glutões passaram a comer frugalmente em certos dias, justamente em dias de
preceito católico, avaros davam esmolas à noite, em ruas mal iluminadas, os
dilapidadores do erário restituíam pequenas quantias, os fraudulentos
tornavam-se sinceros e verdadeiros, embora de forma dissimulada.
O
Diabo ficou espantadíssimo com a descoberta. Voou ao céu, trêmulo de raiva e
pediu uma explicação a Deus, que retrucou: “que queres tu, Diabo? As capas de
algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de
algodão. É a eterna contradição humana”. O conto termina com Deus retomando a
metáfora do Diabo para as virtudes como mantos.
A
exposição de Machado de Assis sobre a contraposição do Bem e do Mal na natureza
humana, como elementos indispensáveis da psique, lembra a noção de opostos
complementares que também utiliza no Conto O Alienista: um médico do interior
fluminense coloca no hospício toda uma cidade e ao final, chegando a conclusão
que todos são normais, interna-se a si próprio. Patologia e a chamada
normalidade como opostos necessários e sempre atuantes. Aqui Bem e Mal como
duas faces fundamentais da natureza humana, sempre presentes. Na igreja do
Diabo as virtudes aparecem como verdadeiros instintos, pulsões essenciais da
natureza humana, necessidades vitais (ou arquetípicas). No domínio do Summum Malum, o Bem aparece como
elemento fundamental.
A
prática do Bem aparece como verdadeira compulsão, praticada às escondidas no
domínio do Summum Malum, na esfera da
Igreja do Diabo. Nada mais coerente com a noção junguiana de totalidade e da percepção
da imago Dei como um Complexio oppositorum na alma do
homem.
O
conto A Igreja do Diabo exprime de forma poética o que Jung elaborou
teoricamente nos livros Resposta a Jó e Interpretação do Dogma da Trindade: o
Mal como existência essencial ao ser humano, como componente fundamental no
destino. Não reconhecê-lo e não dar espaço psicológico a ele é dar a ele poder
sobre nossas vidas.
Referências
CAMARA
CASCUDO, Luis da. (s/d) Dicionário do
Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro.
JUNG,
C. G. (1952/2011) Resposta a Jó. OC
vol. 11- Petrópolis: Vozes.
_________ (1949/2011) Interpretação psicológica do dogma da trindade. OC vol. 11. Petrópolis:
Vozes.
MACHADO
DE ASSIS, Joaquim Maria. (s/d) A igreja do diabo. In: Histórias sem data. Edição eletrônica Kindle.
Rio
de Janeiro, janeiro de 2013
Walter
Boechat.